sábado, 6 de maio de 2023

95 ANOS DE ABAPORU: PELA REVOLUÇÃO CARAÍBA! (Ivan Maia, Poeta e Professor da UFBA)

 

Neste mês de Maio, o antropófago Abaporu completa 95 anos de sua estréia na Revista de Antropofagia. Tarsila do Amaral deu sua pintura de presente de aniversário a Oswald de Andrade, em 11 de Janeiro de 1928, e este batizou a figura com seu nome indígena, e em seguida ocorreu sua primeira aparição pública na Revista de Antropofagia, em Maio de 1928, com o desenho de Tarsila, o esboço da pintura mencionada.

De lá pra cá, o avanço da revolução caraíba ocorreu mas não como esperava seu profeta, autor do Manifesto Antropófago, no qual as idéias revolucionárias foram apresentadas em suas primeiras versões: "Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem."

Essa unificação, que chamaremos interseccional, das insurgências reumanizadoras, que podemos considerar como versão atual da Revolução Caraíba proposta por Oswald no Manifesto, é uma revolução molecular, micropolítica, no sentido pensado por Felix Guattari, em que as lutas políticas se dão em várias relações de poder, além da classe: antirracista, feminista, pela diversidade sexual, contra a degradação ambiental, contra o genocídio indígena, pela reforma agrária, por moradia, contra a fome, etc

Apesar do retrocesso dos últimos seis anos, desde o golpe parlamentar-midiático-jurídico que depôs a presidenta Dilma Rousseff, estes últimos anos foram um período de intensificação das lutas frente ao crescimento de uma força social fascista que, apoiada por setores do poder judiciário e midiático, conseguiu eleger seu presidente em 2018 e desgovernou o país por quatro anos.

Neste 1º de Maio, muitos trabalhadores ainda comemoram o "Dia do Trabalho" sem se darem conta (frequentemente induzidos por instâncias midiáticas) que o Dia do Trabalhador e da Trabalhadora comemora a luta de operários que fizeram greve e foram reprimidos violentamente pela polícia em Chicago em 1886, sobretudo desde que Getúlio Vargas mudou o nome da data em 1943.

Essa mudança de nome realizada por Getúlio Vargas, que transformou o Dia do(a) Trabalhador(a) em "Dia do Trabalho" é o acontecimento ideológico de expropriação pela classe dominante, através do Estado, com protagonismo do governante, de um marco simbólico de luta política (luta de classes) associado a uma greve (que não foi passiva, como as que passaram a ocorrer depois), substituindo o significante e operando uma transmutação de sentido reacionária, quanto ao papel dos sindicatos, que passaram a ser tratados como "pelegos", ou seja, instância de amortecimento (suavização) da expropriação capitalista.

O que Oswald de Andrade compreendeu e explicou em sua tese "A crise da filosofia messiânica", de 1950, é que a luta dos trabalhadores, cuja exploração de sua força de trabalho passou a ocorrer transformando-a em mercadoria a serviço do lucro e da mais valia dos burgueses proprietários dos meios de produção, esta luta tem como finalidade mais autêntica e radical a reapropriação do ócio, compreendido como atividade livre e não mera inatividade ociosa.

Portanto, a Revolução Caraíba não é uma mera luta pelo trabalho, por condições melhores de trabalho, geralmente reduzida a uma luta salarial, mas é uma luta pela libertação do trabalho alienante, no qual os trabalhadores se sujeitam à dominação de classe, para poderem desfrutar do ócio, negado aos trabalhadores pelos donos do negócio, como interpreta Oswald explicando, em sua tese filosófica, o surgimento do capitalismo: "o negócio que é a negação do ócio".

A filosofia antropofágica de Oswald de Andrade, influenciada particularmente por Nietzsche, Marx e Freud, foi elaborada sobretudo nessa tese mencionada e em outros dois textos escritos nos últimos dez anos de vida (1944-1954), a saber, "A marcha das utopias" e "O antropófago". Esta filosofia pensa a "devoração" como uma atitude de apropriação, a partir de uma condição própria derivada da condição originária dos povos indígenas e africanos, que formaram o Brasil resistindo à colonização portuguesa. A filosofia antropofágica propõe que nos apropriemos seletivamente de tudo que na herança dessa colonização pode servir para aumentar a potência de criação da vida, particularmente os saberes, práticas e tecnologias apropriadas a isso.

Assim, a filosofia antropofágica de Oswald desenvolve uma perspectiva descolonizadora por meio de uma crítica irreverente da herança colonial, e realiza uma transvaloração (uma transmutação de valores), visando "a transformação do tabu em totem", impulsionada pelo "instinto caraíba", ou "instinto antropofágico", um impulso lúdico de apropriação seletiva, que busca a reapropriação do ócio como condição para uma carnavalização da vida.

Isso tem um caráter utópico, tal como descrito no texto "A marcha das utopias", em que Oswald aponta uma influência sobre o imaginário político europeu, decorrente do impacto da visão que os invasores tiveram ao se depararem com o modo de vida indígena, que teve um dos primeiros registros no ensaio "Dos canibais"(1580) escrito pelo filósofo Michel de Montaigne, além de impulsionar o surgimento da literatura de teor utópico (Thomas Morus, Tommaso Campanella) e da literatura de viagens.

No entanto, ainda que utópica, a perspectiva antropofágica de Oswald permite superar a absorção do mundo da vida pelo mundo do trabalho, para nos levar a buscar não apenas melhores condições de trabalho, mas sobretudo melhores possibilidades de vida, coletivamente, como ele sugere com sua valorização de uma forma de vida matriarcal, em contato mais próximo com a natureza e suas energias revigorantes.

Nesse tempo ameaçado por uma guerra com risco de uso de arsenais nucleares e emergência de uma multipolaridade na geopolítica mundial, em que o neoliberalismo tenta manter a expropriação privatista de recursos das sociedades nacionais, a luta antropofágica passa pela desprivatização de empresas e combate ao parasitismo do capital financeiro que nos impõe a mais alta taxa de juros do planeta.

O Brasil Pindorama resiste!

terça-feira, 2 de junho de 2020

NÃO CONSIGO RESPIRAR...BASTA! (Ivan Maia, Poeta e Professor da UFBA)

Numa época de epidemia da síndrome respiratória, não foi o coronavírus que sufocou um homem negro norte-americano até a morte, foi o vírus do fascismo racista, pelas mãos de um homem branco. Suas últimas palavras traduzem a dificuldade, para muitos, e a impossibilidade para outros, de respirar no mundo dominado pelo fascismo. Do lado sul da América, centenas de juristas brasileiros lançam manifesto intitulado “Basta!”, pelo fim da “noite de terror que cobre o país”, como ameaça à democracia no Brasil, após o Presidente bradar “Chega!”, revoltado com a liberação do vídeo de sua reunião ministerial pelo Decano da Suprema Corte e com as ações da Polícia Federal, de apreensão de equipamentos usados pela milícia digital conhecida como “Gabinete do Ódio”, que faz campanha em apoio ao Presidente e agressivamente incentiva a ruptura do pacto constitucional, por meio de fechamento do Congresso e do STF, para instauração de uma ditadura militar-miliciana. Bolsonaro então ameaçou usar “as armas da democracia” para impedir uma “ditadura do judiciário”, além de falar em “abuso de autoridade”, e que “as forças armadas estão com o povo”, que “age através de seu Presidente”. Seu filho Eduardo acrescenta depois: “A questão não é se vai ter intervenção, mas quando”. Este mesmo que, meses antes, ameaçou com “novo AI-5”, caso a insurgência chilena contagiasse o Brasil na luta contra o neoliberalismo. Na época, o General Heleno, Ministro da Segurança Presidencial, replicou: “tem de estudar como vai fazer”. Este General, já integrou a equipe do Ministro do Exército, Silvio Frota, militar da linha dura que tentou, na década de 1970 dar golpe no Presidente Geisel, contra o abrandamento do regime em andamento. Heleno foi o General que comandou as forças da ONU no Haiti, que foram responsabilizadas por um massacre de cerca de 70 pessoas em Porto Príncipe, em 2005. Em 2006, foi com uma equipe de militares brasileiros, na condição de palestrante, para a WHINSEC, antiga Escola das Américas, que preparou gerações de militares para atuar com torturas em vários países latino-americanos. Em 2011, passou para a reserva fazendo discurso em defesa do Golpe Militar de 1964, que, em 2019, ele chamou de “contrarevolução”. Considerado o conselheiro militar de Bolsonaro, Heleno iniciou a escalada golpista do governo, em Março de 2020 (no início da epidemia de coronavírus), dizendo “Foda-se!”, quanto à relação com o Congresso que estaria se opondo a iniciativas do poder executivo. Ele sugeriu que o presidente chamasse manifestações contra o Congresso, e estas vêm se repetindo com a participação do Presidente, tendo se direcionado ultimamente também, e principalmente, contra o STF. A encruzilhada em que se encontra a democracia brasileira está no confronto, entre o “Basta!” dos que bradam por democracia, e apoiam o STF, e o “Chega!” do Presidente, incomodado com a exposição de sua equipe ministerial (que conspira contra a democracia, o meio ambiente e os direitos humanos), além de revoltado com as investigações policiais conduzidas pelo Ministro Alexandre Moraes contra seus apoiadores midiáticos difusores de fake news, a milícia digital a quem deve sua vitória na eleição, bancada, em parte, por empresas como Havan e Smart Fit. Do lado fascista, estão os militares do governo (quase 3 mil), as milícias das PMs, os civis bolsonaristas armados, os evangélicos neopentecostais liderados por pastores de grandes igrejas espalhadas pelo mundo, donos de rede de TV, como Edir Macedo e Sílvio Santos, os seguidores de Olavo de Carvalho, e empresários inescrupulosos que tentam impor o retorno ao trabalho de seus empregados, contra as medidas de saúde pública. Do lado da democracia, praticamente todo o STF, a grande imprensa (Globo, Folha, Estadão, Veja e outras), 20 governadores (com destaque para Flávio Dino-MA, Camilo Santana-CE, João Dória-SP), associações como Ordem dos Advogados do Brasil e Associação Brasileira de Imprensa, entre outras, junto com as Centrais Sindicais e as Frentes (Brasil Popular e Povo Sem Medo), partidos de oposição, movimentos sociais, artistas e intelectuais. No meio dessa encruzilhada histórica, alguns estão meio perdidos, buscando uma inviável isenção, em nome de uma “harmonia” entre os poderes (já precária pela disposição golpista do executivo), como os presidentes do Senado e da Câmara, Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia, o mais covarde de todos os personagens da política brasileira contemporânea. Com o crescimento da tensão política, tudo dependerá do compromisso expresso pelo General Azevedo, Ministro da Defesa, de que as forças armadas cumprirão sua missão constitucional, pois só os militares legalistas, comprometidos com os valores democráticos constitucionais, poderão fazer frente à escalada autoritária do bolsonarismo, que continua violando os limites institucionais, armando-se para impor sua tirania, enquanto a avaliação do governo piora nas pesquisas de opinião pública e a epidemia alcança seu pico de contaminação. De um lado, a democracia, as leis, a imprensa, a palavra. Do outro, as armas, militares e civis, a ameaça de ditadura, com AI-5, com tortura, a força bruta. Já faz tempo que vem sendo cantado: “o Brazil está matando o Brasil”! Basta! Não consigo respirar...

sexta-feira, 22 de maio de 2020

O meu chuveiro e a curva ascendente do niilismo (Jarlee Salviano, Professor de Filosofia - UFBA)

Meu chuveiro deu sinais de falência. Fui apressado à compra de um novo, pois há um tempo me acompanha uma paranoia que ganhou voz num dito de certo político, segundo o qual nós “tomamos banho numa cadeira elétrica”. Se bem que o infernal clima baiano exija pouco do acionamento desta máquina dantesca. Diante do balcão, à espera do funcionário (que se enfiou entre prateleiras, com sua máscara mal posta, na busca pelo aparelho) ladearam-me o poeta argentino Jorge Luis Borges e o filósofo alemão Nietzsche, que sussurraram coisas sobre seus livros. Para ser mais preciso cada um me falou de um escrito que, segundo eles, aconselhariam a leitura em tempos de isolamento (ou desolamento): O imortal e Gaia Ciência. Há alguns dias o chuveiro novo está ali num canto à espera. Talvez já o tivesse instalado, não fossem os ecos daqueles sussurros ao pé do ouvido lá na empoeirada loja. Nesta atmosfera apocalíptica em que fomos mergulhados, a curva de meu niilismo congênito cresce à proporção da cadavérica curva do vírus. Não, minto, é pior! A linha da curva aí já subiu reta e agora volta pra esquerda, está virando uma elipse. Dilui cada dia mais toda racionalidade dos gestos. “Tanto faz!” sapecou o cínico Diógenes ao imperador Alexandre diante de sua ameaça de morte. “Qual a diferença entre estar vivo ou morto?” vociferou o estouvado vagabundo de Atenas. Tanto faz isto ou aquilo. Tanto faz hoje ou amanhã. Tanto faz desse jeito ou de outro. Tanto faz... E se um tal niilismo corrosivo fosse o efeito inevitável da pandemia? E se toda estabilidade parmenídica afogasse no rio heraclitiano? Que aconteceria, diria Borges, se a imortalidade fosse um atributo da raça humana? O infeliz da cidadela dos imortais que despenca em um fosso profundo poderia ficar à espera do socorro por décadas (como ficou o personagem de seu conto), afinal, tanto faz... Resgatá-lo hoje ou amanhã dá no mesmo, pois é imortal, nenhuma necessidade torna urgente o auxílio. Que restaria das tábuas de valores, tão zelosamente esculpidas? Que faríamos, diria agora o alemão, se um demônio te revelasse a terrível sentença do “eterno retorno”? Que não há um “para quê” das coisas, um caminho linear rumo a... Eterno ciclo repetitivo do mesmo. Sofrimento, morte, doença, finitude, imperfeição, injustiça... Tudo de novo! Na mesma ordem e proporção. Eu olho meu chuveiro novo ali no canto com a mesma mudez de pensamento e sentimento com que ele me olha. Cada vez mais esta náusea sartreana contamina minha relação com as coisas. Que tipo de criatura sairá no final desta experiência pandêmica terrível? Quão irreversível é a metamorfose física e mental por que passamos? Leio (na verdade, hoje em dia mais ouvimos que lemos) os pensantes da vez falando do advento da solidariedade, da resiliência... Oi? Perdão, é que caiu na mesa minha orelha esquerda. E parece que está caindo meu nariz... Tá bem, tá bem, eu explico: os de meu tempo, que assistiam ao filme A Mosca na sessão da tarde, sabem do que estou falando. A mosca em que o cientista se transforma aos poucos é muito mais apavorante que o inseto do Kafka. Agora sinto como real uma imagem de ficção que sempre me angustiou muito. É uma ideia presente numa película infantil, a animação Wall-e. É aquele filme do robozinho lixeiro que permaneceu no planeta Terra esvaziado de toda vida orgânica depois da catástrofe orquestrada pela estupidez humana que devastou sua própria casa. Patético robô, continua incansavelmente sua inútil tarefa de limpeza de um astro que é só destroços e lixo. Alguns indivíduos restaram, numa imensa nave espacial que zarpou do planeta com a missão de retornar quando os robôs vigilantes notassem sinal de regeneração. Enquanto isto, depois de séculos, a grande sociedade enclausurada na nave estruturou-se a partir de hábitos nada saudáveis. Presos em suas cadeiras robotizadas, que os provêm de todas as necessidades fisiológicas, desaprendem a andar, a dançar, a exercitar-se. Tornaram-se gravemente obesos. Ali não se olham mais diretamente, não se ouvem, não se tocam. Aqui no mundo (ir)real, seguimos também presos. Em processo de caótica transformação (no que diabos vai resultar, não se sabe). Outra angústia que a ficção proporciona neste sentido está no filme Vanilla Sky. Conta a estória do sujeito que firma o contrato com uma empresa que oferece ao contratante uma hibernação (de um corpo que padece, no caso, a deformação física devido a um acidente de carro) e a ilusão (introjetada eletronicamente no cérebro) de uma vida fulgurante previamente confeccionada. A trama atira-nos numa tensão constante entre realidade e sonho. A cena inicial do filme eu quase vivencio todos os dias em que olho pela minha janela: o ator em seu possante automóvel que ganha as ruas da metrópole completamente desertas, como num asfixiante pesadelo. Algo como a onírica imagem do quadro O grito do Edvard Munch. Claro, cá embaixo de minha janela há vivas (por enquanto) almas, não é tão desolador como no filme. Mas uma desertificação avança rápido sem dar sinais de onde vai parar... Ela é interna! Areias que engolem toda vegetação, todo bioma psíquico. Se vai haver (e como será) a regeneração, ninguém sabe. Só o tempo dirá. Que dia é hoje mesmo?

quarta-feira, 20 de maio de 2020

VOZES DO POÇO (Fábio Nogueira - Professor da UNEB e Doutor em Sociologia (USP)

Texto inspirado no filme espanhol o Poço (2020), de Galder Gaztelu-Urrutia. _______ Estamos nos últimos andares do poço. Ele é profundo e os restos do banquete não chegam mais até nós. Vivemos em uma sociedade canibalizada em que nossa única opção é devorar a carne de nosso parceiro de cela. Cada nível do poço é uma prisão. Uma prisão sem grades, mas conveniente segregada entre os que nada têm e os que podem usufruir do pouco que cai da mesa dos níveis dominantes. Eventualmente cagam em nossas cabeças e alguns se jogam para a morte. Escutamos os gritos de dor atravessando a negrura da noite. A vida no poço é uma noite eterna. Aqui toda saída é individual, o que prevalece é o salve-se quem puder. Mas quem construiu o poço? Porque fomos colocados aqui? A quem servimos? Há os que se apegam aos livros. Todos os livros no poço são sagrados. Todos eles falam de um mundo que não existe, mas não ensinam a lutar contra a angústia do poço. Com que forças golpear as paredes espessas, a ignorância e a barbárie? Não podemos cantar? Mas será que alguém nos escuta? Nos primeiros dias preferi o silêncio. Amargar minhas dores calado para que elas silenciassem com o tempo. Mas elas não silenciam. Elas ficam grudadas ao meu peito, rasgando minha carne, como os dentes do meu companheiro de cela que quer me devorar. Aqui não há nem ratos que eu possa comer. Escrevo esta mensagem sem esperança. Aliás a esperança é a primeira coisa que morre quando estamos dentro do poço. Não a última. O que prevalece é o medo e o desespero. Eles nos guiam todo o tempo. Quanto tempo isso vai durar? Vai durar o tempo de nossa desesperança. Não precisamos de esperança, mas de algo que quebre essas paredes e deixe a luz entrar; de comida em nossas mesas, de um abrigo e de quem ouça nossas canções. Aqui todo livro é perigoso pois fala de coisas que não podemos ter, mas desejamos. Desejamos ser livres. Só penso em como sair daqui. Mas isso depende do meu colega de cela que só espera eu dormir para me devorar. Será que só quando chegarmos ao fundo do poço vamos começar a entender as coisas? Não há mais luz aqui dentro e o ar sufoca. Não consigo mais dormir.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

A GUERRA CONTRA O INIMIGO INVISÍVEL (Alan Sampaio, Filósofo, Professor da UNEB)

– Inimigo invisível, o caralho! – Que guerra, que nada! – Ladrões! A cada dia roubam-nos nosso sonho de liberdade. – Dizem hoje os pensadores mais desbocados. ______ I. ______ Imaginem que alguém lhes diz que A GRAVIDADE É NOSSA MAIOR INIMIGA, hoje e sempre – afinal, o número incomensurável de mortes e danos aos vivos que ela provoca permite nomeá-la de A PANDEMIA RENITENTE – e, então, lhes dissesse que precisamos e devemos combatê-la, e que estão na iminência de encontrar a vacina, enquanto uma nova forma de vida planetária é administrada. Para que possam imaginar, eis um diálogo do futuro entre o mediador e uma discente em um chat de aula remota de Filosofia: – Daí, desde 2023, só nos locomovemos com veículos que desafiam a gravidade, enquanto vivemos normalmente em nossas células de antigravidade, acolchoadas, consumindo enlatados, sem contato direto com a rua ou com outras pessoas sem autorização prévia e para fins definidos. As ruas estão sujeitas à gravidade... – Mas só alguns podem circular pela cidad... – Claro! Você e seus poréns... Se combater à pestilência da gravidade, letal para nós, é o nosso objetivo, devemos restringir a circulação, vigiar a todos. Quem poderia sonhar com um avanço do bem assim? – Bentham?! O utilitarismo inglês?! – Verdade. Uma sociedade encarcerada, na qual a censura ao desvio da norma é observada por todos, e, como consequência, de modo culpado pelo infrator. Uma só vontade! Ah! Quando se conquista uma segurança dessa ordem, quem se atreveria a querer, a pensar diferente? Só a guerra constante contra o mal, e o mal supremo, a gravidade, importa! – Ah, ’tá. O povo atomizado em corpos confinados em células de 5 a 10 m² e de alma criada pelos teleprogramas de controle do pensamento... Acho que já vi esse filme em 1984. – Vocês e seus filmes velhos... Ninguém era livre antes. – Mas é um livro... Só falta o senhor me dizer que acredita que a Terra foi mesmo invadida por aliens há cinco anos, quando as medidas de segurança... – Claro! Você tem dúvidas? Nós vimos os vídeos. ______ Bem, queridos, queridas, se escutassem tal anedota, o que diriam? Responderiam como o filósofo clamando por um pouco de possível, diriam como a filósofa que, se isso acontecer, arriscamos a perder todo o possível algum dia criado, ou diriam, queridos, amém!? ______ II. ______ Já dizemos “amém”, não dizemos?! Há uma segunda parte da história. Em 2029, os professores foram completamente substituídos por mediadores, com inscrições militares. Enquanto o mediador da disciplina de Filosofia Moral e Cívica e uma discente discutem sobre liberdade, mobilidade e transcendentalidade da representação, outro aluno envia por escrito a seguinte mensagem: Tenho o otimismo de um pássaro em uma gaiola que enxerga nos viveiros avistados o poder de abrir as asas em bandos, e que com asas abertas, ele poderá finalmente voar. Um pássaro pequeno que sonha com o sonho de liberdade. Então começa a afiar sua língua e do bico faz uma serra, e logo o canto dele repete a oração angélica: “a liberdade é uma luta constante”. E quando canta, quebrado, confuso, o sonho no qual sonharia com a liberdade, elegantemente eleva seu bico. – Que absurdo é esse? De quem é isso? Quem escreveu? – Encontrei como chamada do perfil da colega... Achei suspeito, então postei aqui. Fiz mal? – Não, de modo nenhum, ao contrário, pedirei o aumento de teu conceito por ato ético antiterrorista. As palavras escritas são mais do que suspeitas, são pesadas... – Não, por favor! Por favor! Não reporte à Secretaria de Correção. Já estou apag... Pronto. Apaguei. Viu?! O conto nem é meu... – Não sei se podemos chamar aquilo de conto. A senhora faz parte do MCA? – Não, não, não, senhor! Não, Senhor! De onde tirou essa ideia? O que eu fiz de errado? – O MCA, Movimento Contra Antigravidade, é um grupo terrorista que coloca a nossa existência planetária em risco. Seus membros moram em áreas com escadas... Imaginem o absurdo de seu apego às formas primitivas de vida: es-ca-das... Como podem viver em habitações e ruas tão selvagens? – Mas eu moro em uma célula em New City XXIII. Não tem porquê baixar meu conceito... – Eles fazem festas de corpo presente. Pulam e dançam sem nenhuma segurança, tomados pela irracionalidade do corpo. O frenesi é contagiante. Eles ficam viciados. São a ameaça, a própria doença, a escória da humanidade. – O que fiz de errado, senhor mediador? – Infelizmente, não temos como determinar o alcance de sua mensagem e a fonte. Se só replica a mensagem ou se é mentora da ideia retrograda, só uma investigação VIP determinará... – O senhor vai chamar a Vigilância das Ideias Pesadas pra isso? Não basta a Secretaria de Correção? – Uma campainha se escuta, Din-don. – Mediador? Colegas? Por Fav... – A súplica e o pranto não são escutados pelos membros do chat. No lugar de sua imagem, por um minuto, eles veem o desenho de um pássaro de múltiplas cabeças dentro de uma gaiola caída sobre arames farpados pintados de verde. Depois, até o seu nome é apagado do chat e os perfis, das redes sociais. Enquanto o mediador continua explicando o papel da Secretaria de Correção na definição dos limites do discurso e o da Vigilância da Ideias Pesadas, a VIP da Polícia do Mundo, no combate ao Movimento Contra Antigravidade, um holograma aparece à jovem ex-discente e lhe informa de seus direitos e das sanções às quais está, desde então, submetida por tempo indeterminado, até quando durem as investigações. São medidas que vão da suspensão de acesso à internet até a revogação de sua saída semanal para tomar sol. _______ Meus queridos, minhas queridas, por que se espantam com a ficção? Por que lhes parece surreal ou por que demasiado real?

quinta-feira, 30 de abril de 2020

PELA VIDA, PELA DEMOCRACIA, DIANTE DO COVID, CHEGA DE COVARDIA! (Ivan Maia, Poeta e Professor da UFBA)

A saída de Sérgio Moro do governo Bolsonaro, após a disputa pela nomeação do chefe da Polícia Federal, na qual ambos tentaram intervir para fazê-la servir a interesses próprios, parece ser o momento de implosão do desgoverno que está conduzindo o país ao caos social, a partir da necropolítica neofascista e ultraliberal, que repassa a maior parte da verba pública que se destina ao enfrentamento da epidemia, em seus aspectos críticos (complementares) de saúde pública e economia, para bancos, enquanto desmantela serviços públicos e ameaça as instituições da República. Ambos, Moro e Bolsonaro, são criminosos cujos crimes estão sendo investigados em inquérito aberto no STF pelo Ministro Celso de Mello, decano da Suprema Corte, que já deu recados a Bolsonaro sobre o caráter inconstitucional de suas atuações autoritárias, assim como intimou o Presidente da Câmara, Rodrigo Maia, para examinar os pedidos de impeachment protocolados, que já passam de 30, após suposta omissão deste quanto a esta responsabilidade. Moro perseguiu o ex-presidente Lula, grampeando seu telefone, com condução coercitiva, orientando e colaborando com os procuradores que o acusavam, condenando-o sem provas, baseando-se em delação forçada, prendendo-o e tirando-o da eleição que ganharia no primeiro turno. Moro agiu ilegalmente desde a escuta não autorizada de Dilma, o partidarismo/parcialidade no julgamento de Lula, a prisão antes do trânsito em julgado e o vazamento de delações para a imprensa, que favoreceu o candidato Bolsonaro. Depois Moro deixou de ser juiz para tornar-se superministro, como recompensa por ter favorecido a eleição do fascista, e permaneceu conivente e cúmplice de vários crimes de corrupção do último partido do presidente, deste, de sua família, da milícia ligada a ela e de outros membros do governo, no qual Moro não conseguiu o que mais quis, quanto ao pacote anti-crime: a tentativa de legalizar a violência policial arbitrária, como impunidade para policiais matarem “supostos” criminosos, favorecendo práticas de extermínio, que já vêm vitimando, em sua maioria, jovens negros. Após a redução do superministro Moro a um mero ministro derrotado no Congresso e desprestigiado pelo tirano, e depois da conivência do ex-juiz, “herói do anti-petismo”, com os ataques de Bolsonaro aos outros poderes da República, ele deixa o desgoverno acusando seu ex-chefe de fazer o que ele já fazia como juiz: intervir na Polícia Federal, segundo os mesquinhos interesses próprios, para oprimir adversários tratados como inimigos e ganhar prestígio político. Agora que Bolsonaro está sendo Julgado no STF, se desgastou enfrentando seu ex-ministro da saúde Luis Henrique Mandetta (quanto à estratégia de combate à epidemia), e está prestes a sofrer impeachment, Moro quer sair como herói?!...Crimes, omissões, cumplicidade com bandidos, o que o torna herói? Se ambos estão sujos, Moro e Bolsonaro, quem é que está realmente contra a corrupção? Mora na filosofia e na memória: há mais de ano, quando começou “namoro” com Bolsonaro, Moro vem desmoronando e está desmoralizado! Agora Moro é um mero pária...Assistimos ao desmoronamento do herói superministro desmoralizado pelo mito miliciano paranóico negacionista que desgoverna o país em meio à pandemia, e que está encurralado pela Suprema Corte, sem apoio do Congresso, em conflito com quase todos os Governadores e com a imprensa em geral, com popularidade em queda e alta reprovação da sociedade, além da má fama na imprensa mundial, criticado pela ONU e pela OMS, por sua política “irresponsável” diante da pandemia. O processo de acovardamento das forças democráticas brasileiras que ocorreu nos últimos anos de golpes contra Dilma, Lula, o PT, militantes de partidos de esquerda e movimentos sociais, indígenas e quilombolas, e que agora ameaça as instituições democráticas da República, passou pela deposição de uma presidente inocente, pela condenação e prisão de um ex-presidente sem provas, pelo assassinato de uma vereadora que combatia as milícias, pela eleição de um fascista que exalta ditadura e torturador, pela conivência com a fraude de uma eleição por meio de fake news, pela nomeação de corruptos como ministros, pela entrega do patrimônio público e renúncia à soberania nacional, pela conivência com crimes de amigos milicianos da família do presidente, pela condescendência com a participação do presidente em manifestações favoráveis à ditadura e pelo fechamento do Congresso e da Suprema Corte, e mais recentemente, pela promoção do caos na saúde pública com propostas que favorecem a propagação da epidemia e a mortandade da população, sobretudo a parcela mais vulnerável. Diante disso, e de uma pesquisa de opinião recente, segundo a qual a maioria dos brasileiros está a favor da saída de Bolsonaro, há o risco de que ele e sua família tentem mobilizar milicianos espalhados pelo país para imporem uma saída autoritária do caos social que estão promovendo. Então: Basta de covardia! Fora Bolsonaro! Pela vida, pela democracia!

DIREITO À LIBERDADE EM MEIO À PANDEMIA (Simone Borges, Estudante de Filosofia da UNEB)

O vírus COVID-19 surge na China ao final de 2019. Somos informados que a nova doença é facilmente transmitida, possui sintomas semelhantes aos de uma gripe e que devemos ter mais cuidados com os idosos. Rapidamente o número de óbitos ultrapassa a casa dos milhares. Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declara que o evento se trata de uma pandemia. No Brasil, o pânico toma conta da população e governadores e prefeitos adotam medidas emergenciais para evitar que aconteça aqui o mesmo ocorrido na Itália, Espanha e Estados Unidos. Apesar disso, o presidente Jair Bolsonaro declara que devemos proceder em isolamento vertical, ou seja, de apenas um grupo de pessoas, os idosos, no caso, e não de toda a população, conforme as recomendações da OMS, de médicos e de cientistas. Líderes neoliberais como Jair Bolsonaro e Donald Trump demonstram falta de preocupação com povos pobres (e pretos!). No Brasil e nos Estados Unidos, as populações negras apresentam maior vulnerabilidade em relação ao COVID-19 se comparadas à população branca. As questões socioeconômicas são fatores determinantes no acesso aos recursos da saúde. Os bairros mais pobres, com mais problemas de saneamento básico, são habitados predominantemente por negros. Presenciamos a intensificação do darwinismo social. Brasileiros favelados, acomodados em casas minúsculas, com problemas recorrentes de falta de água, transmitem o vírus, uns aos outros, rapidamente. Gente que está condenada à morte. E outros pretos pobres que estão relegados a trabalhos análogos à escravidão, a exemplo dos entregadores de comida, os “bikeeats” e “motofoods” das metrópoles, que chegam a trabalhar mais de 13 horas diárias por um salário que não alcança o mínimo. Experienciamos uma democracia que não é produtora de liberdade, pois concede liberdades e direitos para alguns, enquanto nega para outros. Seu modus operandi não é tão distinto do da ditadura militar. É uma democracia capitalista em que as vidas pobres e pretas só importam enquanto subjugadas e mantidas estressadas e sujeitadas a altos índices de mortalidade. A necropolítica dos empresários, que fazem carreatas em carros de luxo, exigindo que o proletariado volte a produzir riquezas, define quem deve viver e quem pode morrer. O governo federal demonstra seu descaso na demora em aprovar e iniciar pagamento (para parte da população) do Auxílio Emergencial de seiscentos reais, valor insuficiente para atender às necessidades básicas de uma família. Em caminho inverso, assistimos demonstrações de solidariedade através de confecção e distribuição voluntária de máscaras caseiras; de doações de cestas básicas, de produtos de higiene e limpeza; de auxílio de psicólogos e médicos, por telefone; de saraus promovidos por cantores famosos e anônimos, a partir de suas varandas. O capitalismo não nos deixa livres para decidir ficar em casa. Ser livre, em tempos de pandemia, é ter direito a uma casa com água nas torneiras todos os dias e ter assegurado pelo Estado o direito a recursos para sobrevivência; abrigos para pessoas em situação de rua; transporte público de qualidade e sem aglomerações; máscaras, produtos de higiene e limpeza e equipamentos de proteção individual. A liberdade é uma luta constante, como afirma Angela Davis. Constante é nossa luta por vida saudável e plenamente realizada, livre de violência, opressão e exploração, com direito a justiça social, saúde, educação, igualdade de oportunidades entre gênero e raça, abolição de todas as formas de escravidão. Só conseguimos ser livres coletivamente. Este não é projeto egoísta ou individualista. O caminho rumo à liberdade deve incluir a solidariedade. E a solidariedade inclui a nossa capacidade de empatia e de reconhecimento da humanidade do outro no outro. Liberdade real é aquela estendida a todas as pessoas, irrestritamente. Estamos longe de poder vivenciá-la plenamente. No que depende dos líderes políticos nunca a alcançaremos. Nenhuma mudança social parte voluntariamente daqueles que lideram. É sempre por meio da organização e mobilização de demonstrações públicas de insatisfação. Devemos nos dispor a abraçar essa longa jornada rumo à liberdade, numa busca coletiva por uma democracia pautada na igualdade e na justiça. Certamente, se tivermos organização social voltada para liberdade das pessoas, a superação de pandemias e misérias será muito mais fácil.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

NEGACIONISMO, NEOFASCISMO E PANDEMIA (Ivan Maia, Poeta e Professor da UFBA)

Há um comportamento que tem se manifestado na sociedade brasileira, e em geral não é percebido por quem o adota, mas que aparece em múltiplas formas. Tem sido chamado de negacionismo uma postura diante de diferentes contextos existenciais, nos quais ocorre, por parte de indivíduos, grupos ou instituições, uma negação de aspectos da realidade, cuja ocorrência é contestada, ocultada, distorcida, atribuída a outros como invenção fictícia, falseamento ou simplesmente mentira. Este comportamento tem tido forte influência no campo da política, de modo a gerar decisões relativas a políticas públicas de governos, leis do parlamento e sentenças jurídicas. Sobretudo, tem se manifestado por parte de agentes sociais de tendência reacionária, mas também pode aparecer como posturas adotadas por atores do campo democrático. Por parte dos indivíduos reacionários, o negacionismo se mostra em vários campos da experiência humana, como uma postura irracional, anti-científica, apolítica, necropolítica, farisaica, fundamentalista, entre outras formas. Este negacionismo reacionário tem aparecido como parte do que tem sido compreendido como Neofascismo, uma nova forma do fascismo que historicamente já assumiu as formas do Fascismo italiano de Mussolini e do Nazismo alemão de Hitler. Na contemporaneidade, o Neofascismo brasileiro liderado por Bolsonaro manifesta seu negacionismo não apenas negando veracidade às versões científicas sobre evolução biológica, aquecimento global, desmatamento, história da escravidão e da ditadura militar. Como nesses casos, sem fundamentação teórica consistente, o negacionismo bolsonarista chega a colocar em risco a vida de milhões de brasileiros diante da pandemia do coronavírus, negando a necessidade e eficácia da política de saúde pública do distanciamento social, como principal medida preventiva no enfrentamento da epidemia, segundo recomendação da Organização Mundial de Saúde, que pode evitar a morte de mais de um milhão de pessoas, segundo estudo recente da Imperial College, de Londres. Este negacionismo reacionário contemporâneo, herdeiro daquele que vem negando a humanidade dos povos negros da África e indígenas da América, desde o início da colonização, também se identifica com posições apolíticas, de negação da política, supondo-a mero jogo de interesses escusos, desqualificando toda forma de enfrentamento democrático no jogo de forças políticas nas relações de poder que permeiam a vida em sociedade, enquanto mascara sua necropolítica de produção de mortes, de trabalhadores expostos à contaminação epidêmica, de cidadãos expostos à violência da criminalidade, alimentada pela fome dos que ficam sem renda mínima para sobrevivência, e de parte da população que compõe o grupo de risco (sobretudo idosos), que são expostos à contaminação por falta de distanciamento social. O caráter necropolítico do negacionismo neofascista brasileiro se apresenta de forma emblemática por meio do presidente irracionalmente mitificado e sua personalidade sociopata, marcada por comportamento agressivo, que incita a violência, o armamentismo, a brutalidade policial, a perseguição política, e discurso paranóico delirante de ameaça de ditadura comunista. Em parte, isso é resultante do ressentimento da elite econômica que deixou de ganhar (para aumentar seus privilégios) recursos destinados por governos progressistas a políticas públicas sociais, após anos de redemocratização que desconstruíram, apenas parcialmente, o autoritarismo da ditadura militar, de onde provem a parcela recalcada da agressividade miliciana neofascista, principal componente da sociopatia bolsonarista. O negacionismo neofascista brasileiro é parte daquele disseminado no mundo atual, que levou a equívocos de atitudes em relação à epidemia, como o que vitimou o economista Rehman Shukr, ligado ao FMI, que defendia a prioridade da economia sobre a saúde pública, ou o que acometeu o ministro da saúde israelense Yaakov Litzman, o qual contaminou a comunidade religiosa que permaneceu frequentando, e ainda o primeiro ministro inglês Boris Johnson, que havia feito campanha para as pessoas se exporem ao contágio e desenvolverem imunidade, e acabou internado na UTI de um hospital. Finalmente, é necessário que os democratas permaneçam alertas para o perigo do neofascismo bolsonarista, e não deneguem este movimento político como sendo apenas mais uma força política do jogo democrático. É preciso compreender o caráter niilista, de negação da vida, do negacionismo contemporâneo, no jogo político do discurso, com sua tática de disseminação de fake news, para gerar a coragem trágica de ser realista na compreensão do mundo e afirmar ativamente a vida, aceitando que a realidade seja como vem a ser, sem se resignar ao status quo: absorver antropofagicamente aquilo que na realidade aumenta nossa potência de criar possibilidades de vida na luta política, pela praxis desconstrutiva da necropolítica do capitalismo neoliberal, particularmente em sua conjunção com o neofascismo.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Ponto de Encontro - Os corpos para além da necropolítica (Luciana Lucena, artista-pesquisadora PPGAC/UNIRIO)

Antes mesmo de conhecer Seu Gomes, já o avistava da minha janela. Pontualmente às oito da manhã, ele chegava na fruteria da esquina e escolhia as frutas frescas da estação. Trocamos dois dedos de prosa no dia em que foi decretado o Estado de Emergência aqui em Portugal. Desde lá, não o vejo mais passar com sua sacolinha xadrez a tiracolo. Até as gaivotas que costumavam rondar o comércio, agora apontam na direção do isolamento geral. De frente à minha janela, agora mais monótona, lembrei de uma brincadeira de infância: Estamos isolados para não ficarmos doentes ou estamos doentes e, por isso, isolados? Tostines! Nossos corpos reclusos refletem a biopolítica de Estados autoritários que, ao longo do tempo, do acirramento de suas fronteiras e de uma necropolítica perversa definem quem deve morrer e quem deve viver. O cientista político e colunista português, do jornal Folha de São Paulo, João Pereira Coutinho, questionado em entrevista ao podcast Café da manhã: “Como o autoritarismo age numa pandemia”(02/04/2020), sobre o que líderes autoritários precisam para crescer e expandir seus projetos de poder, responde que necessitam de autoridade e de oportunidade. Um exemplo recente é a Hungria, cujo primeiro ministro, Viktor Orban, conseguiu aprovar um estado de emergência sem limite de vigência, com texto que lhe amplia poderes, podendo suspender sessões parlamentares, eleições e até decretar prisão para quem divulgar informações consideradas incorretas pelo governo. Com o pretexto da pandemia, governos ultranacionalistas têm a oportunidade perfeita para legitimar o excesso de controle sobre as liberdades que cidadãos incautos lhes oferecem cheios de confiança. Estou a falar da Europa, porque diz o ditado também português, que “Em terra de sapos, de cócoras com eles”. Quem sabe seja menos doloroso cutucar a ferida dos outros(?) - Dos que estão do outro lado da porta, do outro lado da janela, do outro lado da minha máscara, já escassa na farmácia. Esses, do outro lado da minha pele. O silêncio quarentenal das ruas, permite-me ouvir o panelaço generalizado que se opõe à fala criminosa dirigida à população, para que siga-se a vida, já que “brasileiro deveria ser estudado por sua capacidade de pular no esgoto sem que nada lhe aconteça”. No caso do governo brasileiro, seguindo a mesma linha dos governos americano ou britânico, quando são feitas alegações de que o trabalho e a economia do país não podem parar, o que se percebe não é uma simples irresponsabilidade irresignada, mas a escolha pela morte. Não é legítimo que um governante opte entre a economia ou a saúde do seu povo. Esta divisão existe enquanto possíveis pastas administrativas, não como opções a serem descartadas. Trata-se de direitos sociais, regidos pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, sendo, portanto, dever de um chefe de Estado preservá-los igualmente. O isolamento é um convite para percebermos as formas de poder, de modo que não inviabilizem nossos corpos. Em artigo recente, o filósofo espanhol Paul B. Preciado (2020), analisando a situação contemporânea das biopolíticas a partir do Covid-19, sugere que “El sujeto del technopatriarcado neoliberal que la covid-19 fabrica no tiene piel, es intocable, no tiene manos. (...) No tiene lábios, no tiene lengua”. Ou administramos nossas distâncias-proximidades ou delegamos, cada vez mais, o comando dos nossos corpos a governos autoritários, que só precisam de oportunidade para transformar estado de exceção em normalidade. Conviver, do latim convivere, significa adaptar-se a uma nova situação. Então, na condição de artista das artes da presença, penso neste isolamento enquanto lugar de relação com este outro, esconjurado do meu país, do meu corpo, do meu quadrado. Este outro, isolado do outro lado da cidade, do mapa, do mundo. Se no pós-guerra, o modelo cotidiano, citadino, amparado na cultura predominantemente urbana, cria uma arte relacional, não é porque estamos isolados que isto se perde. Continuamos neste estado de relação. Fomos isolados pela nossa patologia coletiva. E parafraseando Bourriaud (2009): “...a arte sempre foi relacional, ou seja, fator de socialidade e fundadora do diálogo”. Então, sem querer romantizar a falta de recursos, achando que se instaura agora uma nova era em que artistas produzirão as grandes obras primas do confinamento, sigamos invocando o diálogo com as fronteiras de todos os nossos corpos reclusos. Quando me despedi de Seu Gomes, ele disse ter uma vontade enorme de viajar, de conhecer o Brasil em especial, mas que raramente ia além da esquina da própria casa.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

“Pântano de perversidade e cinismo” (Átila de Menezes Lima, Professor da UNIVASF)

Essas foram palavras de um camarada em um desabafo e achei-as perfeitas para demonstrar a hipocrisia, o ódio, a falta de solidariedade para com as vidas expressas pela nossa burguesia e frações de classes dominantes. O pronunciamento do “messias” salvador e a propaganda anunciada nos meios de comunicação de “O Brasil não pode parar”, assim como a defesa de grande parte do empresariado nacional e de setores “religiosos” contra a quarentena e a favor do retorno ao trabalho, com discursos de que a economia vai quebrar, que desemprego gera pobreza e miséria etc, dão náuseas e ocultam processos históricos maiores. A primeira questão é que somos um país com desigualdades sociais brutais. Segundo a ONU (2019) fomos a 2ª maior concentração de renda do planeta em 2019. Dados da OXFAM (2017) mostram que seis brasileiros têm a riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões mais pobres e que os 5% mais ricos detêm a mesma fatia de renda dos demais 95%. Nossos problemas sociais são seculares e persistem na atualidade. Veja a miséria, fato brutal e crônico, gerou e gera o luxo e riqueza dos poderosos de nossa “nação”. Tem-se muita gente na informalidade, isso demonstra grandes problemas de uma economia dependente de uma lógica econômica que inevitavelmente gera miséria. Quando políticas conciliatórias e de “redução da pobreza” foram sendo implementadas, os mesmos empresários que estão falando em miséria foram os primeiros a serem contra. Segundo: a economia brasileira está em crise faz tempo e vem implementando uma série de políticas de austeridade como: a “reforma” trabalhista, a EC 95 (Teto de Gastos), assim como a “reforma da previdência” e demais atos adotados pelo atual presidente do país. Sabe quem vem se beneficiando dessas políticas? O sistema financeiro (bancos, fundos de pensões), grande empresariado etc... Em 2019 os lucros dos bancos cresceram 18% e somaram R$ 81,5 bilhões. Nosso maior problema chama-se “dívida pública” e ela é comprada pelos bancos. Esses estão tendo lucros altíssimos, vem quebrando a economia do país e as políticas na crise são para salvar os mesmos. Não vemos nenhuma atitude para suspender o pagamento da “dívida”. Conforme Fattorelli no ano de 2018 e 2019, respectivamente, pagamos de juros e amortização da dívida o equivalente a R$ 1.065.725.301.673,00 e 1.037.563.709.336,00 correspondendo a 40,66% e 38,27% de nossos gastos. Esses trilhões corresponderam a 2,9 e 2,8 bilhões por dia aos bancos. Se compararmos com o que é gasto com saúde e educação veremos que as quantias são vergonhosas. Quando observamos o quanto está sendo liberado para o combate ao coronavírus e o que foi dado em ajuda aos bancos vemos que a prioridade do governo é aos últimos. Ao invés de jogar os trabalhadores em mais miséria e para a possibilidade de contágios, deveríamos não pagar a dívida pública ao capital financeiro e fazer políticas de benefícios sociais. Dinheiro tem e de sobra. Terceiro, temos um problema crônico de não taxação das grandes fortunas, o perdão das dívidas dos bancos, do agronegócio, dos ruralistas e de outros setores da economia, sem falar nas sonegações de impostos e nas atividades ilegais que reinam num submundo obscuro e que ninguém fala. Agora parte dos mais ricos do Brasil vem falar que estão preocupados com a miséria no país? Isso não passa de cinismo. Por fim, quem gera riqueza social não são os empresários, mas sim a exploração social da força de trabalho dos trabalhadores. Os empresários sabem disso e maximizam suas fontes de lucros em cima de nossa exploração. Essa é uma questão importante para entendermos as “razões” da vida econômica, pois o capitalismo necessita ter sempre uma margem de lucro crescente. É justamente do nosso trabalho que são geradas as riquezas dos patrões através do tempo de trabalho não pago (também conhecido como mais-valia). Então quanto mais tempo trabalhando e menor o salário, maior a riqueza do patrão. É por isso que eles vivem nos dando outras funções de trabalho para além das nossas, esticando nossas horas no trabalho etc... Com o excedente de riquezas, os patrões aplicam em mais tecnologias e máquinas. Essas diminuem vários postos de trabalho, criando desemprego, subemprego, trabalhadores precarizados de aplicativos etc. Uma grande massa de trabalhadores desempregados e com fome se submetem a todo tipo de exploração. Isso contribui para a precarização, subcontratação, rebaixamento de salários, aumentando os lucros dos patrões. A preocupação dos empresários e do grande capital no momento não é com desemprego, com miséria, etc. Estão preocupados é com a taxa de lucro deles que está caindo. Com o uso das riquezas e dinheiro em caixa que o país possui, que segundo Fattoreli (2019) eram cerca de 4 trilhões, e/ou a suspensão do pagamento dos juros da dívida pública dava pra enfrentar essa crise e investir em saúde pública, ciência, educação. Isso depende de vontade política e de luta de classes. Organizemo-nos! Somente a luta transforma.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Pela Vida, Contra a Necropolítica, Ditadura Nunca Mais! (Ivan Maia, Poeta eProfessor da UFBA)

Abaporu, em Tupi-Guarani, o antropófago que devora toda forma de pensar, sentir, agir, capaz de aumentar nossa potência de vida de modo dadivoso. Assim, nesse dia em que se completa 56 anos do golpe militar que instalou a ditadura cívico-militar no Brasil por longos 21 anos, e em meio à epidemia que tomou conta do mundo, estamos num momento grave, decisivo, e a preocupação econômica com ganhos dos ricos é a maior ameaça à estratégia epidemiológica de enfrentamento da pandemia, para evitar o caos nos serviços de saúde, com superlotação de UTIs. A preocupação econômica com a garantia de condições para os trabalhadores (desempregados, empregados ou trabalhadores informais) e pequenos empresários ficarem em casa se tornou muito relevante agora. O desgoverno brasileiro não consegue seguir com um mínimo de sensatez a racionalidade daqueles que idolatra, como Trump, que mudou sua estratégia, antes irresponsavelmente negacionista, e agora, como todos os grandes países, busca dar ao seu povo condições de ficar em casa, como principal medida para conter o avanço da epidemia. Bolsonaro, mesmo sendo porta-voz de uma racionalidade capitalista necropolítica, que Achille Mbembe compreendeu, a partir de Michel Foucault, como exercicio de um poder soberano de fazer morrer, que se conjuga com a biopolitica do poder governamental de regulação e normalização da vida da população governada, assim como se conjuga com o poder disciplinar que exerce controle institucional sobre os corpos dos indivíduos, ele tem obsessão pela ditadura, defende tortura, e é movido por pulsões perversas de um sadismo sociopata, com delírios fundamentalistas, terraplanistas e negacionistas (da história, da ciência). Chamá-lo de louco não legitima manicômio, porque o manicômio não é o único modo de lidar com a loucura, muito menos com a sociopatia de um perverso delirante que comete crime contra a humanidade. Além disso, o parecer dado pela junta militar que qualificou o capitão terrorista de 1987 como portador de um distúrbio mental não impediu que milhares de militares o apoiassem e muitos destes participem de seu desgoverno, mesmo preocupados com a repercussão negativa para a imagem das forças armadas. Assim, não há incompatibilidade entre a insanidade do porta-voz da racionalidade necropolitica com esta mesma racionalidade, a não ser que a insanidade se torne disfuncional para operar a politica neoliberal e leve ao descarte do projeto de ditador. Bolsonaro, mesmo diante de todas as evidências, lançou uma campanha irresponsável para que o brasileiro não deixe de trabalhar e volte a sair de casa. Conclamou o retorno das crianças às aulas e manteve como serviços essenciais cultos religiosos, focos centrais na transmissão da Covid-19 em outros países. Como Hitler, conduzir a própria nação à morte é destinação histórica de um governante eleito pela pulsão de morte que se sobrepôs à potência de vida. Depor Bolsonaro torna-se, cada vez mais, uma questão de vida ou morte. Algo como reduzir a quantidade de mortes da epidemia, de mais de um milhão a poucas dezenas de milhares, segundo o Imperial College of London. Ao mesmo tempo, Maria Lúcia Fattorelli denuncia um dos maiores roubos de dinheiro público, que deveria gerar ajuda ao povo pobre e miserável, com a medida do governo que vai destinar mais de um trilhão aos bancos. Estamos vivendo, 56 anos depois, um momento em que o presidente eleito defendendo a ditadura militar, e desde o ano passado, promovendo a comemoração do golpe de 64, prepara-se para dar novo golpe decretando Estado de Sítio, após promover o caos social em meio à grave epidemia. Se ele conseguir gerar a desordem pública, terá a justificativa para realizar o seu mais velho sonho e tornar-se ditador. Não sabemos bem qual a força que ele tem pra isso junto a militares das forças armadas e PMs, assim como caminhoneiros e outras categorias com predominância de tendências fascistas. Estejamos alertas, pois o Ministro da Defesa e o Vice-Presidente se unem a outras lideranças militares para celebrarem o golpe militar de 64, no momento em que o Presidente favorece a contaminação epidêmica, enquanto os pobres estão desamparados pelo Estado e começam a realizar saques. A saída antropofágica dessa grave crise passa pela incorporação de uma virulenta solidariedade, capaz de mobilizar ajuda mútua, reumanizar a sociedade, gerar reação das instituições democráticas ao golpismo bolsonarista, com deposição do desgoverno eleito de forma fraudulenta por meio de fake news e realização de novas eleições o quanto antes. Assim, é fundamental: 1) Suspensão do pagamento dos juros da dívida pública 2) Cancelamento da EC 95 (Teto de gastos) 3) Renda básica universal 4) Taxação de grandes fortunas e maiores rendas. Para investimento em políticas públicas sociais com prioridade para Saúde Pública por meio do SUS. Senão a reação será ao modo Bacurau...

95 ANOS DE ABAPORU: PELA REVOLUÇÃO CARAÍBA! (Ivan Maia, Poeta e Professor da UFBA)

  Neste mês de Maio, o antropófago Abaporu completa 95 anos de sua estréia na Revista de Antropofagia. Tarsila do Amaral deu sua pintura de...